Magistrados do Judiciário Trabalhista Baiano se manifestam sobre situação de trabalho análogo a escravo

14/07/2021

No último domingo, o programa Fantástico da Rede de TV Globo apresentou uma reportagem especial sobre a história de mulheres que viveram décadas em situação de trabalho doméstico análogo ao escravo, entre elas duas baianas. Uma vida inteira de privações, incluindo o não desenvolvimento psicológico e não vivência plena dos ciclos de vida – infância, adolescência, juventude. Segundo a juíza Clarissa Mota, responsável por prolatar as decisões pela 9ª Vara do Trabalho, o quadro de pessoas em situação de trabalho análogo ao escravo, em Salvador, região em que atua, é muito maior do que se imagina.

A magistrada explica que muitos fatores se impõem como dificuldades para a extinção desse tipo de problema. “Estão envolvidas questões culturais e históricas. O Brasil é um país no qual a economia foi baseada na escravidão durante o período em que foi colônia e até mesmo após a independência. E essas marcas ainda são muito fortes na nossa sociedade, na nossa economia e em muitos aspectos”.

 

Outra barreira citada pela juíza Clarissa Mota é a inviolabilidade do domicílio, garantida constitucionalmente, que somente pode ser acessado sem autorização do morador em casos de maior gravidade, a exemplo de prisões em flagrante ou por determinação judicial. “A atuação do Poder Judiciário, nas investigações sobre a ocorrência de trabalho escravo, é autorizar a entrada dos órgãos de fiscalização no domicílio, quando houver indícios e elementos que autorizem essa medida”.

 

A juíza ainda explica que, constatada a situação de trabalho análogo ao escravo, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizará ação civil pública, cabendo, então, ao Judiciário Trabalhista apreciar os pedidos que forem formulados.

 

Os empregadores, nesses casos, devem pagar todos os direitos contratuais devidos ao empregado em condição de escravidão, como salários, férias, depósitos do FGTS, horas extraordinárias, dentre outros. O MPT pode, ainda, pedir a reparação dos danos morais pela submissão das vítimas a condições indignas de vida e de trabalho.

A Diretora de Cidadania e Direitos Humanos da AMATRA Adriana Manta esclarece que apesar de formalmente abolida no Brasil, a existência de escravidão em sua forma contemporânea foi admitida no país em 1995, passando a implantar medidas de combate a esta forma degradante de trabalho. “O art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003, prevê o crime de redução de pessoa à condição análoga a de escravo, quer reduzindo-a a trabalhos forçados, jornadas exaustivas, sujeitando-a a condições degradantes de trabalho ou restringindo sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador, sendo a pena aumentada se o crime for cometido contra criança ou adolescente, ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem”.

 

Adriana Manta explica ainda que, além da expressa previsão do crime no Código Penal brasileiro, existem normas internacionais de Direitos Humanos que visam promover a dignidade humana e o trabalho decente, coibindo a prática de trabalho escravo, a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos (arts. 4º, 5º e 23), do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (art. 8º), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (arts. 6º e 7º), a Declaração e Programa de Ação de de Viena de 1993, a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 6º), as Convenções n.º 29, 95, 105 e 182 da OIT.

 

Segundo a ONU, o trabalho doméstico, a agricultura, a construção, a manufatura e a indústria do entretenimento estão entre os setores mais afetados globalmente pelo problema. “No Brasil, o combate ao trabalho escravo contemporâneo e a promoção do trabalho decente ganharam maior relevância com a adoção da Nova Agenda de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Agenda 2030), que inclui como uma de suas metas (8.7) erradicar o trabalho forçado, a escravidão moderna, o tráfico de pessoas e eliminar as piores formas de trabalho infantil”, finaliza a magistrada.

 

A realização de trabalho por empregados domésticos, no âmbito familiar, sem pagamento em dinheiro, apenas com a troca dos serviços por moradia, comida e vestimentas, configura trabalho em condição análoga a de escravo, cabendo as medidas necessárias ao seu combate.

 

“No Brasil, o trabalho escravo bem antes de uma chaga, é uma manifestação de um modo de obtenção de vantagens econômicas indevidas sobre o trabalho alheio, a partir da violência contra pessoas. E esta violência é muitas vezes naturalizada pela herança mal resolvida de nosso passado escravocrata, traduzida em alguns traços culturais profundos. É imprescindível a presença da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e das demais instituições atuantes do Estado, em suas respectivas competências, para reverter este cenário, coibindo este grave ilícito e punindo os responsáveis”, declarou o presidente da AMATRA, Guilherme Ludwig.

 

A realização de trabalho por empregados domésticos, no âmbito familiar, sem pagamento em dinheiro, apenas com a troca dos serviços por moradia, comida e vestimentas, configura trabalho em condição análoga a de escravo, cabendo as medidas necessárias ao seu combate.